Estou farto de viver no país do "jeitinho", então vou começar a reclamar até vencer o sistema pelo cansaço. Desconfio que me cansarei antes de cansar o sistema, mas ainda assim reclamarei.
O verbete "jeitinho" (também famoso como "jeitinho brasileiro") é o nome fantasia de uma mazela que assola o Brasil provavelmente desde o descobrimento, a qual tem o seguinte nome científico:
pensandum levaren vantajus, fodum tuto mundi e a mi mesmum. Uma das mais recentes e cada vez mais comuns manifestações do jeitinho são as falsificações de carteiras de estudante visando ao pagamento de apenas metade do valor do ingresso para shows, cinemas, teatro, etc. Mas antes de me aprofundar aqui, abrirei um parênteses para falar sobre o totalmente imbecil conceito da meia entrada.
Em que pesem todas as manifestações de direitos humanos/constitucionais tentando nos fazer crer que somos todos iguais, a própria lei, em espírito e letra, trata de nos mostrar a realidade. Um exemplo claro disto é a atual onda de criações de cotas em universidades, mas sobre este assunto escrevo em outro momento. Outro exemplo foi a "bem-intencionada" criação da meia entrada para estudantes em atrações culturais.
O argumento é válido, difícil de rebater, bonito na foto. Quem seria capaz de dizer que não concorda que os estudantes tenham acesso à cultura? Afinal, a cultura ajuda a formar cidadãos, e que país não almejaria ter cidadãos bem-formados? Ótimo. Como então garantir o acesso dos estudantes menos abastados à cultura? A canetadas, que é como se faz por aqui. Criam-se leis e do dia para a noite os estudantes têm direito a pagar metade do preço em qualquer atração cultural. Como provam que são estudantes? Basta mostrar a carteirinha ou crachá da instituição de ensino no momento da compra. Tudo muito simples, justo, bonito. Viva a legislação brasileira protegendo os interesses da população.
Esse raciocínio simiesco não resiste nem à mais superficial das análises. Primeiro, porque parte do pressuposto de que todos os jovens estudantes brasileiros se interessam por cultura. Segundo, porque parte do pressuposto de que todos os shows, filmes, peças de teatro são cultura, o que obviamente é falso. Terceiro, porque parte da premissa utópica de que essa forma de controle - carteirinhas e crachás - tem como funcionar no país do jeitinho.
Há um outro problema aí. Quem disse que os estudantes são melhores que os outros seres humanos? Por que eles podem pagar metade e um cientista, por exemplo, tem de pagar 100%? Só porque estão no período de "formação"? Mas um estudante de Biologia com 40 anos, fazendo sua segunda faculdade apenas por hobby, também tem direito à meia entrada. Ele está em formação?
Mais um problema. Suponha que você seja um empresário disposto a bancar um cachê zilionário para trazer o Pink Floyd ao Brasil. Sabendo que como resultado da decisão política que criou a meia entrada haverá um número imprevisível de pessoas pagando metade do preço, como você calcularia o preço do ingresso para ter lucro? Exemplo: supondo que o custo todo do processo (cachês, propaganda, infra-estrutura, etc.) seja de 3 milhões de reais e o número de lugares disponíveis no estádio escolhido para o show seja de 100 mil. Para empatar, você teria de vender todos os 100 mil ingressos a 30 reais cada. Para ter um lucro de 10% (qualquer um vai querer lucrar mais que isso, mas suponha que você seja altruísta, ou simplesmente meio boboca), você tem de vender todos os ingressos a 33 reais cada. Sabendo que um número X de pessoas, que varia de 0 a 100 mil, vai pagar metade, quanto você cobra pelo ingresso? Acho que 99,9% dos empresários cobrariam 66 reais. Naturalmente, o mesmo raciocínio vale para cinema, teatro, etc.
E, como o assunto deste post era o jeitinho, chegamos ao ponto que gera minha indignação. Não é preciso ter mais neurônios que uma anêmona para concluir que, num país onde toda regra só existe para ser burlada por pessoas que se acham espertas e só respeitam mesmo as leis de Murphy, da Gravidade e de Gerson, um sistema de controle tão frágil vai falhar completamente. Qualquer um com uma câmera digital, uma impressora e um computador faz uma carteirinha de estudante de, digamos, Engenharia dos Rios Marítimos na Universidade da Astrologia Islâmica. Provavelmente ninguém jamais conseguirá os dados exatos, mas aposto que o número de carteiras de estudante frias já é maior que o de carteiras reais. O triste é ver marmanjos de 23, 25, 30 anos de idade, já formados (e até pós-graduados), empregados e ganhando bem, produzindo para si carteiras de estudante falsas. Mas mais triste ainda é perceber que, infelizmente, eles estão certos, porque afinal "o sistema é que é estúpido, pagar o valor inteiro é para os trouxas"; eles, que são "espertos", vão pagar metade.
Como creio ter provado, ninguém paga metade. Alguns - os trouxas como eu, que por princípios não conseguem apresentar um documento falso para obter vantagem - pagam o dobro. Já os espertos pagam o valor real. E, como de costume, acham ingenuamente que realmente estão levando alguma vantagem, quando tudo o que conseguem é inviabilizar de novo o sistema.